quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ewige wiederkunft

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!"

Esse é um trecho de “A Gaia Ciência”, último trabalho da fase positiva de Nietzsche, que resume um pouco o conceito de “eterno retorno”. A ideia é a que bem e mal, angústia e prazer, dia e noite, são eventos e sensações que se alternam, inevitavelmente. Tanto na história pessoal quanto na mundial, tudo é cíclico. Pense aí na sua vida se não é verdade. Amores, decepções, depressões, novos amores. Crises, crescimentos, guerras, epidemias.

A questão ali foi posta por um demônio e dá arrepios só de pensar: conseguiria você viver, de novo, toda a sua vida? Isso quer dizer mesmos erros, acertos, prazeres, e essas coisas poéticas todas. Mas pense no lado mais material. São as mesmas doenças, curas, empregos, pais, moradias, chefes, crises, notas na escola, tapas na cara.

Eis porque a proposta é de um demônio. Embora pareça interessante em princípio, a proposta é absolutamente agoniante. Não é um presente divino e sim uma maldição. Você já pensou no passado e suspirou “Ah, se naquela época eu soubesse o que eu sei hoje”? Viver de novo a mesma vida é viver sempre com esse suspiro preso em você, vendo as coisas acontecerem iguais e imaginando como você poderia ter feito diferente.

Por outro lado, a reflexão é boa. Para poder viver a mesma vida, devemos amá-la muito, devemos tê-la vivida de forma muito lúcida e prazerosa e termos alcançado tudo que queríamos. Devemos? A questão é essa. Devemos ter amor ao nosso destino irremediável ou construí-lo?

Apenas seríamos capazes de amar a vida que temos a ponto de querer vivê-la novamente se ela for muito boa. E isso não está completamente nas nossas mãos. Ou está? Pois apesar das inúmeras histórias que religiões e cultos têm inventado, não temos garantia nenhuma que há mais do que essa vida besta nossa, essa que começou no ventre da sua mãe e que terminará numa cama de hospital - ou numa faixa de pedestre. Então é melhor tentar deixar cada momento merecedor de ser vivido de novo, certo?

Para refletir.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Pensando com Laerte


No filme “The Cement Garden”, de 1993, a personagem de Charlotte Gainsbourg é flagrada vestindo um menininho com roupas femininas. Ao ser questionada pelo irmão mais velho dele, ela diz: “Garotas podem usar jeans, usar camisetas e botas, pois é aceito ser um menino. Mas para uma menino, ser uma menina é degradante. Pois você acha que ser menina é degradante. Mas, secretamente, você adoraria saber, não adoraria? Como é que se sente uma garota?”.

Tem bem pouco tempo que Laerte, um dos maiores e melhores cartunistas do Brasil, resolveu fazer algo muito corajoso: revelar para todo mundo que curtia uma onda crossdresser – que é quando uma pessoa começa a usar algumas peças de roupa ou certos acessórios que são, geralmente, atribuídos ao sexo oposto. A declaração foi dada à revista Bravo!, em sua versão impressa e também em uma pequena entrevista em vídeo, aqui.

“Na verdade, a minha convicção é que todas as pessoas gostariam de experimentar muito mais do que aquilo que os códigos sociais permitem, recomendam e limitam. Em se tratando de roupas, acho que as pessoas gostariam de frequentar outros parâmetros e outras áreas também. A vontade de vestir roupas femininas é muito mais frequente do que se imagina. As pessoas sofrem muito por não fazer isso, por achar que é uma vergonha ou algum tipo de diminuição.”, diz ele de forma natural e lúcida. “Vestir uma roupa feminina é constestar um parâmetro de gênero que vigora na sociedade. No limite, é uma coisa política. No fundo, é uma contestação de proposta de mudança. Mas é um prazer meu também”.

Fico feliz em ver gente que enxerga como uma babaquice esses mitos. Dividir a humanidade em gênero é uma coisa que nasceu com as religiões, com a ideia de que a divisão deveria vir das metades necessárias para conceber uma nova vida e com as antigas crenças da vida em matrimônio.

Voltando ao Laerte: “Eu não estou imitando uma mulher, não quero passar por mulher. Eu estou confabulando com um modo de ser que vem sido atribuído às mulheres. Assim como as mulheres – enquanto gênero – frequentam hoje modos, vestimentas e comportamentos que eram exclusivamente masculinos, acho que os homens deviam fazer essa passagem também”. Acho que ele tem razão.

Hoje, uma mulher tem a liberdade de usar calça, sapatos sem salto, não precisa de espartilho, pode falar alto, grosso e beber cerveja. Enquanto isso, nenhum homem pode usar blusa rosa, beber um drink de frutas, comer arroz integral ou ler poesias. A gente – eu, você, nossos pais, nossos tataravôs – chegou aqui há pouco tempo e se engana achando que o mundo sempre foi assim. As coisas foram evoluindo de uma maneira que, por sua lentidão, parecem naturais, mas não são. Em outras culturas, em outras épocas, matar um animal para comer era pecado; era impossível mudar de classe social; bebês usarem roupas amarelas atraía dinheiro; homens só faziam sexo com mulheres para procriarem, pois o prazer mesmo vinha da relação com outros homens.

As gerações mais recentes são daquelas que obrigam o menino a enfrentar precocemente situações para as quais ele talvez não esteja preparado, mas tem de ir em frente porque é homem. Não pode ter medo, não pode chorar, não pode dançar, não pode gostar de arte. O resultado é um bando de gente despreparada para lidar com o desconforto, com o sagrado, com o feminino - e um monte de mulheres insatisfeitas com seus próprios homens, claro.

A chamada "cultura ao redor" não pode ser mais forte do que nossa vontade de mudar e nossa inclinação a pensar diferente, a pensar sobre nossos hábitos e sobre os nossos próprios pensamentos. Não há quem resista a tanta pressão e angústia, presentes dos dois lados da moeda. Passou da hora de todo mundo aprender a cuidar da sua vida. No seguinte sentido: se a coisa que faz bem para você não faz mal para ninguém, significa que a coisa faz bem a todos. Liberdade é isso.